A África foi sinônimo durante décadas de guerra, genocídio,
corrupção, fome e extrema pobreza. Esta imagem está mudando graças a uma
sequência de bons dados econômicos. Muitos países africanos se encontram diante
de uma nova encruzilhada marcada por uma disjuntiva: repetição do fracasso ou
salto para a frente. A China e as potências ocidentais procurarão tirar o
máximo proveito dos recursos naturais do continente.
O artigo é de Marcelo
Justo, direto de Londres
Foto: Common Dreams
A África foi sinônimo durante décadas de guerra,
genocídio, corrupção, fome e extrema pobreza, um continente de extraordinária
beleza natural abandonado por Deus. Esta imagem está mudando graças a uma
sequência de bons dados econômicos. Segundo a revista especializada britânica
The Economist, seis dos países com maior crescimento do mundo nos últimos dez
anos foram africanos. A empresa de consultoria estadunidense McKinsey aponta
para a mesma direção com uma medição diferente. Neste século XXI, o Produto
Interno Bruto (PIB) da África cresceu o dobro que nas décadas perdidas de 80 e
90.
A bonança estratégica é a chave destes índices de crescimento econômico em um
momento em que o mundo desenvolvido segue lutando com a austeridade e o sobre
endividamento. Graças a este boom, a segunda economia do leste do continente, a
Tanzânia, crescerá 7% este ano e o próximo, enquanto que duas de suas nações
mais pobres e atribuladas, Serra Leoa e Gana, deverão apresentar índices de 14
e 7,8%, respectivamente. Moçambique, Etiópia, Uganda, Quênia, Serra Leoa e
Somália são outros países tocados pela varinha mágica do petróleo e do gás que
beneficiou antes Nigéria e Angola.
Deus finalmente despertou para a África? O subdiretor da revista especializada
“África Confidencial”, Andrew Weir, encontra-se entre os céticos com boa
memória histórica. “O tema é que a África já viveu esse fenômeno. A pergunta
chave é a quem ele beneficia e de que modo contribui para o desenvolvimento.
Está muito claro que a China, as companhias energéticas e o setor financeiro
estão vivendo grandes oportunidades. A questão é se isso vai beneficiar os
africanos”, disse Weir à Carta Maior.
O lado obscuro da história
O século XIX foi marcado pelas disputas colonialistas entre potências
ocidentais e a superexploração tão esplendidamente retratada por Joseph Conrad
em seu “Coração das Trevas”. O longo caminho da independência que começou
depois da Segunda Guerra Mundial gerou enormes expectativas que se desfizeram
em meio a divisões étnicas, lutas de poder e uma corrupção galopante. Os cinco
bilhões de dólares que acabaram nas contas suíças do ditador do Zaire, Mobutu Sese
Seko, a paranoia desatada por Idi Amin em Uganda, a fome no Sudão e o genocídio
em Ruanda simbolizaram entre os anos 60 e os 90 o destino do continente.
Hoje a China é a nova estrela no firmamento das superpotências e multinacionais
que disputam entre si os recursos do continente. Em 1999, o comércio
China-África era de seis bilhões de dólares. Uma década mais tarde já superava
a casa dos 90 bilhões de dólares. Hoje a China é o principal sócio comercial do
continente. Em uma cúpula em Pequim realizada no ano passado com 50 chefes de
estado da África, o presidente Hu Jintao prometeu créditos de 20 bilhões de
dólares para o investimento em infraestrutura e “desenvolvimento sustentável”.
A estratégia chinesa aponta para um desenvolvimento da infraestrutura básica –
estradas, portos, etc. – que facilite o acesso aos produtos primários do
continente de que necessita sua indústria. Seus investimentos na Zâmbia, que
tem grandes reservas de cobre e carvão, constituem cerca de 20% do PIB desse
país e 75% de suas exportações. Cerca de 20% do algodão de que precisa sua
indústria têxtil chega de Mali, Benin e Burkina Fasso. Uma terça parte do
petróleo importado pelo gigante asiático vem da África e, sobretudo, de Angola.
E é precisamente esse setor energético, chave do suposto “renascimento”
africano, o grande eixo da polêmica.
A maldição do ouro negro
O exemplo da Nigéria é o que melhor ilustra as oportunidades e perigos da atual
etapa. Maior produtor de petróleo da África, a Nigéria sobre o que muitos
chamam de “maldição do ouro negro” ou “doença holandesa”. Nestas duas
“sintomatologias”, a posse de um recurso invejável termina sendo uma obscura
maldição que condena uma nação ao atraso, à pobreza e à corrupção.
As ONGs calculam que, na última década, cerca de 29 bilhões de dólares se
perderam na Nigéria em um obscuro labirinto de bolsos oficiais e de prebendas
das multinacionais. Este labirinto significa não só uma perda de riqueza em
termos de arrecadação de impostos e investimento em desenvolvimento –
infraestrutura, educação, etc. -, como também a aparição e consolidação de
núcleos de poder e práticas institucionais que são muito difíceis de desfazer.
A outra cara desta maldição é a chamada “doença holandesa”, um termo cunhado em
1997 pela The Economist para descrever a decadência do setor manufatureiro na
Holanda após o descobrimento de uma importante jazida de gás em 1959. Os
sintomas dessa enfermidade aparecem a partir do fluxo de investimentos que são
atraídos pelo petróleo e gás e a inevitável valorização da moeda local gerada
por eles. Essa valorização torna pouco competitiva o resto da economia, afoga a
indústria nacional e gera processos inflacionários.
“A isso se soma o fato de que os países vendem o recurso bruto em vez de
desenvolver produtos com valor agregado. A Nigéria não tem uma refinaria de
petróleo porque há uma elite que faz dinheiro importando e distribuindo os
produtos petroleiros que chegam do exterior. E isso não ocorre só no campo da
energia. O cacau poderia ser exportado como chocolate, mas isso não ocorre pela
teia de interesses que se interpõe no caminho”, assinalou Weir.
A encruzilhada
Existem alguns sinais que apontam para esta direção. Nos últimos anos, Botswana
se converteu em um dos poucos países africanos que conseguiu dar o salto da
exploração de um produto primário – diamantes – para um com valor agregado –
gemas -, multiplicando o emprego e a riqueza nacional. Com um olho posto neste
exemplo e outro no modelo da Noruega, um país que converteu a riqueza
petroleira em uma fonte de desenvolvimento por meio da criação de um Fundo
Soberano, Gana, Moçambique e Tanzânia criaram fundos especiais autônomos para
administrar a riqueza energética e utilizá-la para o desenvolvimento
econômico-social.
Nas eleições de dezembro em Gana, que deram a vitória ao atual presidente John
Dramani Mahama, o eixo da campanha foi o investimento dos recursos energéticos.
Segundo apontou ao Financial Times, o professor de política da Universidade de
Gana, Emmanuel Gymah-Boadi, a eleição “foi uma batalha encoberta pelo controle
do petróleo e do gás”. No papel, as coisas podem funcionar. A lei de
investimento do petróleo de Gana estipula que cerca de 30% dos lucros deve
fazer parte de um fundo soberano especial para o reinvestimento. Mas o próprio
presidente eleito fez um chamamento à vigilância logo após a instauração desse
fundo. “Não resta dúvida que mesmo depois de 55 anos de independência somos um
país jovem. Como tal tivemos nossa porção de instabilidade e dificuldades”,
disse Mahama.
O século XXI não tem que ser necessariamente o XIX. Neste sentido muitos países
africanos se encontram diante de uma nova encruzilhada marcada por uma
disjuntiva de ferro: repetição do fracasso ou salto para a frente, Nigéria ou
Noruega. A China e as potências ocidentais procurarão tirar o máximo proveito
dos recursos naturais do continente. Da conduta que será adotada pelos
dirigentes africanos e da vigilância por parte da sociedade civil dependerá que
a África volte a ser uma região de guerras e fome ou então que se converta em
um polo de crescimento mundial.
Tradução: Marco Aurélio Weissheimer
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